As solenidades da Semana Santa de Braga afirmam-se hodiernamente como um momento determinante da vida coletiva bracarense. É um facto que a memória da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo já seria anualmente replicada, de formas mais ou menos clarividentes, desde que o Cristianismo se enraizou na cidade. No entanto, a afirmação como principal produto turístico, ou seja, gerador de um impacto económico assinalável, é conquista recente e observou um percurso iniciado em 1933. Apesar de se tratar de um conjunto de práticas e manifestações de âmbito religioso, os seus atores não se cingem a esse universo, mas abordam todos os setores da sociedade. Quando a Fé significa Cultura e Economia, aquela muralha edificada após a revolução francesa é assolada e o contributo que a Igreja oferece à sociedade laica e livre evidencia-se.
Renovar os horizontes de cultura
A relação da Igreja com a Cultura foi um dos principais debates da terceira sessão do Concílio Vaticano II. De que forma poderia a Igreja quebrar ou limitar a linha imaginária que as sociedades deixaram adensar-se entre o que consideram ser de natureza religiosa e, por conseguinte, de âmbito privado, e aquilo que é efetivamente público? Esta barreira em alguns contextos tinha-se tornado impeditiva da presença e ação da Igreja Católica, fomentando o divórcio inaugurado na era das luzes.
As orientações conciliares foram sinónimo de uma nova atitude perante a sociedade, com efeitos aferíveis até aos nossos dias. O Conselho Pontifício para a Cultura, estrutura criada em 1982 precisamente com o objetivo de fomentar este diálogo, haveria de emanar um documento intitulado “Para uma Pastoral da Cultura” no qual se procura orientar a relação da Igreja com os setores da sociedade onde é mais evidente esta afinidade. No entender do citado manifesto, a cultura «é tão natural ao homem, que a sua natureza não tem nenhum aspecto que não se manifeste na sua cultura» . Este entendimento alargado do conceito de cultura, obviamente que integra a dimensão religiosa, presente num incomensurável rol de ações promovidas pelo ser humano.
O Património Cultural, imóvel, móvel e imaterial, é um dos âmbitos mais óbvios onde a Igreja se cruza com as comunidades humanas. Na cidade de Braga, além da sua fisionomia, marcada pelas edificações monumentais que a Igreja foi legando ao longo das eras, também as práticas e manifestações comunitárias são dominadas por esta vinculação histórica. Neste aspeto, a Semana Santa é o mais visível traço intangível que perpassou para o quotidiano da comunidade bracarense.
Neste âmbito, entende-se que a religião «é também memória e tradição, e a piedade popular continua a ser uma das maiores expressões de uma inculturação da fé», pois nela se harmonizam «a fé e a liturgia, o sentimento e as artes, e se fortalece a consciência de sua própria identidade nas tradições locais» . No mesmo documento se refere que, no âmbito do desenvolvimento do tempo livre e do turismo religioso, algumas iniciativas permitem «salvaguardar, restaurar e valorizar o património cultural religioso existente» . A Semana Santa de Braga foi-se afirmando como um dos mais imediatos exemplos desta necessária vinculação entre a Fé e a Cultura.
Primeiros indícios de mobilização
Não se pense, no entanto, que a mobilização de pessoas promovida no âmbito da Semana Santa de Braga tem o seu advento apenas quando se começou a pensar este conjunto de ações em termos turísticos. Bem antes de 1933 já as principais procissões que hoje integram o programa da Semana Santa apresentavam uma crescente capacidade de atração de “forasteiros”.
Recordemos a sexta-feira Santa de 1803 quando, por ocasião da representação do auto do Descimento da Cruz, que episodicamente era organizado pela Irmandade de Santa Cruz, se juntou uma imensa multidão na atual Avenida Central. Segundo um testemunho coevo, «comcorreo aqui muita gente de fora de longe, e famílias nobres, e se emcheo todo o dito Campo e janellas de gente», julgando-se «serem mais de quarenta mil pessoas» . Segundo o mesmo testemunho, chegaram a ser requisitados «soldados de Vianna para sentinelas».
Também a Procissão dos Passos, que não se realizava ainda enquadrada com a Semana Santa, mas no antigo domingo da Paixão, arrastava «milhares de pessoas» vindas «das aldeias circunvizinhas, e do Porto» . Segundo um periódico da época, trata-se mesmo do «mais apparatoso e sentimental que aqui se faz» . Esta popularidade devia-se também ao desfile de penitentes e disciplinantes que, até 1876, costumavam acompanhar aos milhares esta procissão. O grotesco espetáculo de sangue e sofrimento sobrepunha-se, muitas vezes, à dimensão sagrada que era sublinhada nos cerimoniais organizados na cidade de Braga.
Também a Procissão do Senhor Ecce Homo detinha um peculiar aliciante, que a tornou alvo de deslocações de pessoas, particularmente na primeira metade do século XIX. A ronda dos “fogaréus”, hoje denominados de farricocos, criava um ambiente de devassa pública, com acusações e incriminações dirigidas às pessoas que assistiam, responsável por uma especial mobilização.
O Ano Santo de 1933: mudança de paradigma
Foi efetivamente no ano de 1933 que o paradigma da Semana Santa de Braga começou a alterar-se. Nesse ano, o Papa Pio XI convocou um Jubileu extraordinário para comemorar os 1900 anos da morte de Cristo. Conhecido como Ano Santo da Redenção, este jubileu decorreria entre o Domingo de Ramos de 1933 e a Páscoa do ano seguinte. Acabado de assumir a missão de Arcebispo Primaz, D. António Bento Martins Júnior pretendeu assinalar de forma impactante a abertura deste especial momento, que sucederia na Semana Santa desse ano.
O espírito de iniciativa do prelado haveria de conduzi-lo à criação da primeira Comissão da Semana Santa de Braga. No dia 25 de março desse ano realizar-se-ia a primeira reunião desta comissão, na qual foram estudadas “as providências necessárias para garantir a completa e perfeita execução do programa das solenidades” . Este grupo era constituído pelos cónegos Novais e Sousa e Manuel de Aguiar Barreiros, o Arcipreste de Braga juntamente com os Párocos da Cidade, os mestres-de-cerimónias Padre Miranda Oliveira e Padre Gomes de Almeida, os mestres de música sacra Padre Domingos Correia e Padre Alberto Braz, os capelães de Santa Cruz e da Misericórdia, e ainda os diretores do Colégio dos Órfãos e da Oficina de S. José . Tratou-se de um momento relevante no percurso histórico da Semana Santa de Braga.
Esta comissão, além de unificar a programação levada a efeito no âmbito da Semana Santa de Braga, propôs-se integrar uma nova procissão no programa das solenidades, que seria o resultado visível deste labor coletivo. A Procissão do Enterro do Senhor, prática que se popularizara em muitas localidades portuguesas e que curiosamente já se realizara na cidade de Braga - embora sem regularidade – nos séculos XVII e XVIII, seria organizada na noite de Sexta-feira Santa. Foi tão pródigo o seu arranque que rapidamente se tornou no cerimonial mais participado das solenidades.
Além da Procissão do Enterro do Senhor, no qual tomavam parte as entidades chamadas à comissão, foi editado e compilado, pela primeira vez, um único programa da Semana Santa, integrando-se as ações realizadas pelo Cabido na Sé Primaz, as procissões e outras práticas devocionais promovidas pelas Irmandades de Santa Cruz e da Misericórdia, bem como a Festa de Nossa Senhora das Dores nos Congregados, entre outras iniciativas. No ano seguinte a Procissão dos Passos deslocar-se-ia do quinto Domingo da Quaresma para o Domingo de Ramos, assim se mantendo até aos nossos dias. A formalização de uma Comissão da Semana Santa veio fomentar um trabalho coordenado que consolidou e inaugurou dinâmicas, além de possibilitar a afirmação e mediatização do evento.
Anos mais tarde, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo haveria de olhar para a Semana Santa de Braga como um momento fulcral para a estratégia turística da cidade, onde há várias décadas prontificava apenas as Festas de São João. Os cartazes de 1950 e 1965 foram idealizados por esta estrutura estatal e em 1960 a Procissão da Senhora das Angústias passaria a integrar o programa na noite de sábado Santo, na sequência de uma série de reuniões mantidas com a edilidade.
Uma programação suplementar
Se os principais cerimoniais eminentemente religiosos detinham, por via do seu enraizamento comunitário, uma vitalidade assinalável, foi sendo criado o imperativo de oferecer um programa complementar de âmbito cultural. Logo no ano de arranque da Comissão da Semana Santa, em 1933, às cerimónias religiosas acresceria um “sarau de arte” executado pelo Orfeão Lusitano, sob direção artística de Afonso Valentim, traria ao palco do Theatro Circo na noite de Sábado Santo a peça “La agonia del Redentore”. Além disso, um concurso das capelas dos Passos tentaria mobilizar os habitantes de Braga para a ornamentação e ações de culto junto a cada um dos sete altares existentes no casco urbano. Nas décadas seguintes esta programação suplementar seria incrementada. Conferências, exposições, concertos, concursos e encenações obteriam um lugar na programação anunciada.
Os concertos ainda hoje ocupam um lugar fundamental na programação. O Theatro Circo chegou a ser palco para alguns deles, mas também a Igreja do Seminário e o Salão Medieval chegaram a deter espaço na programação. Inesquecível foi o concerto de música sacra preparado afincadamente pelo Padre Manuel Faria em 1949, no entanto até os monges de Singeverga chegaram a atuar no âmbito das solenidades bracarenses em 1947. A Sé Primaz é o palco inevitável de alguns dos concertos anualmente apresentados, secundado pelos templos das Irmandades de Santa Cruz e Misericórdia e, ainda, S. Victor, que tem desenvolvido um significativo conjunto de ações culturais relacionadas com a Procissão da Burrinha.
O Salão Recreativo Bracarense, depois Cinema São Geraldo, também chegou a ser palco de conferência e sessões de cinema com temática hagiográfica, como aquela de 1934 em que o Padre Magalhães Costa abordaria o Santo Sudário. Paulo Durão, José Pereira Borges, José de Almeida Correia, D. António Coelho e até Vitorino Nemésio orientaram algumas das conferências que costumavam suceder na segunda ou terça-feira santa.
No âmbito eminentemente cultural também o cinema foi ocupando espaço. Em 1952 o Theatro Circo acolheria o filme “A vida de Santa Margarida de Cortona” e em 1955 “A Paixão segundo S. Mateus”. Foram, no entanto, as exposições um dos âmbitos que crescentemente almejou dimensão, sendo hoje um dos aspetos mais sublinhados da programação paralela às procissões. Artes plásticas, mostras histórico-documentais, fotografia ou arte sacra são as versões mais recorrentes.
A popularização dos atos que compõem o programa das solenidades da Semana Santa é evidentemente dominado pelas procissões, os momentos mais esperados e que apresentam o mais significativo índice de atratividade. No entanto, os atos culturais – apesar de considerarmos que as procissões também são ações de âmbito cultural – afirmam-se como um suplemento de enorme valia para uma vivência mais plena deste especial momento da comunidade bracarense.